OLHOS DE FUBECA - Steine sind Steine, The Most Precious Treasure

STEINE SIND STEINE
Quase perdendo o dom da visão, Luke e George surgiram na frente de seu navio. Aquele holofote figueirense estava logo na cara deles e os tomava por completo. Logo o resto da tripulação menos Juan apareceu logo atrás, os olhos ardendo maneira. Logo uma voz começou a ser falada, mas até os ouvidos se negaram a funcionar em consideração aos olhos apertados protegidos por braços.
— Por que eles não estão tremendo de pavor perante minha voz?!
— Talvez porque o holofote está sendo mais assustador... — disse timidamente uma voz feminina bastante macia e talvez assustada.
— Pois apaguem ele! O holofote... HAHAHA!
Logo o limite entre o Terceiro Mar e o outro sem importância mergulhou em escuridão novamente. Agora abriram os olhos e pavorosos ficaram quando perceberam a imensidão do fato! O navio logo em frente era do tamanho do mundo e outros incontáveis menores mas grandes se estendiam quer onde a visão alcançasse e quer não. Não podiam nem ver nada do transatlântico, pois seu casco era maior que o navio deles. Stên, querendo ser vista em toda a glória que ela acreditava possuir, já lançava uma ordem:
— Descer!
Logo o casco começou a afundar e ficaram na mesma estatura que os nossos heróis. Era que o transatlântico possuía um sistema de escolha de altura em que navegar, fazendo entrar água dentro do casco na quantidade certa. E isso já ajudava também a manter os cavalos-motores sempre com banho tomado, pois um pirata tem que ser limpo ora!
— Stên, a Rainha do Terceiro Mar! — exclamou Luke! Logo todos os outros soltaram interjeições e tiveram suas faces espantadas colocadas em pequenos quadros pela tela para dar efeito dramático.
Stên se negava a falar diretamente a inimigos recém-conhecidos. Uma porta-voz fora treinada por toda a vida para a missão. Esta era Samy e era bastante feinha, mas se achava a última bolacha do pacote. Tomou lugar atrás do holofote gigantesco como púlpito e
— VOSSA MAJESTADE IPSISSISSISSIMVS PONT. MAX. STÊN, A RAINHA DO TERCEIRO MAR, APRESENTA-SE AGORA AOS INFERIORES SERES QUE ADENTRARAM SEUS DOMÍNIOS CERTIFICADOS PELO DECRETO STÊNICO DE NVMERO DOIS MILHÕES QVATROCENTOS E SETENTA E NOVE MIL DVZENTOS E DEZENOVE EM ANNO DOMINA DEZESSETE
— Como essa menina berra, não somos surdos! — cochichou George para seu capitão, o qual concordou com ele com um olhar e um mexer de cabeça.
Nem Stên aguentou e arrancou ela do púlpito.
— Muito bem! Chega de enrolação que quero logo voltar pra casa! Pois bem, saibam vocês que vocês estão entrando em águas que não são de vocês, mas sim estão sob meu domínio!
— Então donde está seu nome? — deu Luke uma de espertão.
— Bem ali:
E apontou para um lugar ali próximo onde boiava uma boia com uma plaquinha fincada que dizia STÊN.
— AO ATAQUE! — berrou Stên e imediatamente o barco de nossos heróis começou a virar com violência e conseguiu abrir caminho entre algumas naus stênicas desavisadas que não esperavam pela velocidade do inimigo. E quem salvou a pátria foi Juan, que estava no volante no momento mais que oportuno! — Ora, vamos! Atrás deles!
Agora era toda a frota atrás do barquinho. Stên voltou a acender seu holofote e quase cegou o nosso amigo Rojão que olhava com fascinação todo aquele poderio. Ela ia ali pelo meio muito bem protegida.
Mas claro que o barco de Luke jamais que seria páreo à toda a força inimiga. Então o grande capitão, sentindo grande segurança, simplesmente mandou que virassem e fossem contra todos os barcos em vez de fugir. Todos se assustaram, mas a confiança no líder era grande e fizeram a loucura.
— O que estão fazendo?! — Exclamou Stên quando via aquele brinquedo aquático de criança vindo com toda a velocidade contra sua verdadeira muralha marítima.
Quando estavam muito próximos do grande choque todos fecharam os olhos, exceto Stên que arregalava. Estavam muito próximos da desgraça, mas ninguém teve um só pingo de medo... Próximos, muito próximos, bastante próximos... E então aconteceu.
Aconteceu que a frota de Stên ficou tão assustada com aquele movimento inusitado que ela toda deu meia volta volver. Stên berrava que todas eram umas idiotas, que ela não dera ordem alguma de cessar missão, mas o choque psicológico era sempre mais forte que alguns gritos externos. Todos comemoraram!
— E saibam só que eu joguei um chip no navio de Stên quando ele desceu, agora saberemos onde encontrá-la em qualquer lugar do mundo!
— Você é o máximo, George! — engrandeceu Luke.
— Gostou? Há há!

Passaram vários dias se preparando para o grande ataque. No mesmo dia, quando alvoreceu, foram todos para o Guerreiro Auto-Técnico para negociar alguns canhões pra Rojão utilizar. George supervisionava tudo, pois da teoria ele entendia bem. Foi quando todos lembraram dos grandes conhecimentos de Edil e sentiram falta dele um bocado. Claro que no caminho George e Rojão foram gastando todo o dinheiro que tinham em livros e mais livros, ainda mais com a promessa de riqueza que a Coroa lhes dava! Momento oportuno é esse para falarmos um pouco dos sonhos de cada um de nossa tripulação, para assim continuarmos dando continuidade na formação da personalidade de cada um.
Luke imaginava-se Rei do Terceiro Mar com a Coroa de Rude sobre a cabeça, mas um rei justo porém nada modesto: seria glorificado por suas grandes obras e isso era o bastante para receber em troca de sua bondade. Também tinha a fantasia de possuir um barco-mansão, com o qual poderia viajar por aí sem sair de casa. Não queria um palácio, pois tinha um certo medo de sofrer um acidente nas masmorras. É sempre bom precaver.
George só queria ter uma aposentadoria tranquila, morar no interior com seus pais e ser professor de inglês. Depois que encontrou Luke, Rojão e Edil tornou-se grande leitor e estudioso, mesmo que este último ele tenha sempre sido. Não tinha preocupação com a Coroa ou com glória, mas o dinheiro que viria com ela ajudaria a atingir seus humildes objetivos com menos obstáculos.
Rojão também tinha aspirações modestas com um diferencial: acumular o quanto pudesse de relíquias relacionadas a Carlos Drummond de Andrade! Se pudesse, até aquela cadeira da biblioteca do Rio, a única em que Drummond sentava. Se tivesse uma casa com decoração medieval ou mitológica, então... Ah! Então o dinheiro ajudaria muito nisso!
Juan sonhava em construir grandes moradias de design inovador. Juan era cozinheiro sim mas esse era tão somente seu hobby, seu passatempo. Claro que ter várias amigas ao seu redor sempre seria bom, mas até ele sabia que nunca seria capaz de ser dividido em partes. O dinheiro ajudaria a pagar os grandes custos da faculdade.
Rion estava feliz como estava e não gostava de planos. Então ele só queria sempre estar perto do seu amigo de infância e se a Coroa trouxesse felicidade ao outro, também queria ela para que isso acontecesse.
O dinheiro é importante para todos os desejos, mas alguns gostam do acúmulo mais do que outros. Delícias e dores de cada um.

Mas os dias passaram — e como passaram! Passaram voando! O tempo urge, como diria um grande conhecido de tempos atrás... mas esse é para uma apresentação futura.
Em algum desses dias, passaram pelo porto de Juiz de Fora novamente pra pagar as despesas da reforma do quarto principal que fora obliterado pela buzinada monstro. A buzina fora instalada por Luke.
— Avisei que a campainha lá de casa era mais que perigosa.
Nas viagens, também passearam pelas praias brasileiras, mas de navio: descalços na areia nunca, eram piratas! O navio, a contragosto dos marujos e do líder, teve que ir pela água mesmo.
Na véspera da grande data, George terminava O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Ficou espantado de como a história tinha quinhentos anos! Não percebia a ironia do dia seguinte, pois ironia irônica mesmo é aquela que ironicamente não se percebe.
Chegou o dia do combate! Ao menos meia-noite, ainda não teria chegado o dia para os mais xaropes que insistem no Só é amanhã depois que eu dormi. Fizeram aquela festança pois sabiam que iriam vencer e conseguir a tal da Coroa. O dia foi calculado astrologicamente pelo próprio capitão que tinha um pé em tudo quanto era assunto imaginável — mas sabia realmente de uma coisa ou outra (nem as duas ao mesmo tempo). Depois todos dormiram bem. Luke teve mais um de seus sonhos, mas nem neles jamais se viria na situação em que estaria logo logo...

THE MOST PRECIOUS TREASURE
Acordaram cedinho e tomaram aquele café da manhã preparado por Juan. Café expresso nunca ia mal, nunca mesmo, além de ser ele mesmo um grande incentivo pra se levantar cedo. Logo depois se via George lá fora, na beira do casco em um dos lados do navio, mirando sonhador o horizonte onde só se via mais mar. Luke chegou perto do grande amigo para olhar também.
— É lindo, não é? — comentou George, com uma voz característica de quando se sente feliz e bem.
— Nem me fale...
— Fico lembrando dos tempos em Minas, quando era criança... esse céu sempre lá em cima...
— Lindo mesmo.
— O céu era o mesmo, mas tão diferente... e agora esse céu refletido abaixo de nós... como os opostos se parecem.
Uma tirada de sabedoria filosófica que só se ganha com a vivência humilde e sincera sempre vinha de George. Todos sempre se sentiam felizes com essas falas, principalmente Luke, ou ao menos é do que eu tenho mais certeza. Para expressar tal fato, o capitão pousou a mão sobre o ombro de seu marujo sem mover o olhar.

Neste exato momento, passando quase raspando no casco do navio de nossos heróis, passa uma daquelas barquinhas venezianas com senhora Adelaide sob um guarda-sol do século XIX a sós com o barqueiro. Logo atrás vinha senhor Manoel remando seu próprio barco, fazendo um esforço imenso pra não ser visto por ela. Olhava sem parar para seu relógio de bolso, como se isso importasse alguma coisa.
Naquela manhã ele havia acordado inspirado! Correu para o café e viu sua amada deixando o porto naquela barquinha. Era o dia dele, então isso que não o impediria não senhor. E mais, isso deixava as coisas muito mais interessantes.
Ele não queria alcança-la, era só pra poder olhá-la... Nem que fosse de longe. Mas eis que o barqueiro percebeu que era muito estranho aquele senhor sempre na cola, então ele parou o barquinho e perguntou para a senhora Adelaide se ela conhecia o homem que vinha logo ali. Quando ela olhou para trás senhor Manoel se embananava todo e virava o barco, quanto nervoso! Ela ficou preocupada, mas o barqueiro decidiu dar pé na tábua e logo estavam voltando para o porto de onde haviam saído. Senhor Manoel ficou frustrado, subiu no barco de novo e foi resgatado por nossos heróis. Deixaram-no no porto também e logo voltaram para onde estavam, rápido imprevisto.

O dia passou correndo. Toda a frota estava no mesmo ritmo. George estudava seus documentos fervorosamente, Rojão carregava espadas, armas de pólvora e calibrava os novos canhões, Luke agitado ia de um lado pro outro na cabine, Rion observava e Juan carregava pra lá e pra cá seus ingredientes. Juan era cozinheiro. Era hora de ultrapassar os limites do Terceiro Mar e só aguardar pela volta de Stên, a Rainha do Terceiro Mar.
Estavam eles lá invadindo os limites do Terceiro Mar. A noite estava a pico. Todos sabiam o que estaria por vir: Stên e toda sua frota sem igual. E não tardou em cumprir-se tal profecia! Lá vinha toda a enormidade em forma de cascos de madeira. Stên já estava com aquela cara de quem chupou limão, enquanto suas marujas estavam com cara de poucos amigos. Provavelmente todas sofreram muito na mão da capitã pela amarelada que deram no encontro anterior. Mas agora vinham com fogo nos olhos, mesmo que esse fogo parecesse queimar em mais lugares.
 — Muito bem! — berrou ela como estátua em cima do holofote, olhando para nossos heróis com fervor — Agora que essas incompetentes levaram uma lição, já sabem muito bem o que fazer com vocês!
Todos tremeram um bocado. A imponência em números e em temor não poderia ser narrada nem mesmo pelo maior da nossa literatura. E entramos em um debate sobre Machado ou Guimarães, mesmo que Drummond seja o preferido de um de nossos favoritos. Drummond? Ah, como a vida muda!
— Vamos logo então Stên! — disse Luke com propriedade — Mostre toda sua fúria sobre nós se é capaz! Mas nesta noite ninguém desistirá!
— Ora ora! De onde vem tanta coragem? O que você é perante minha grandeza?
— Pois mostrarei o que sou... e não só o que sou, mas o que somos! Nós todos, juntos! — se referia à sua própria tripulação. Todos foram contagiados com sua coragem e se sentiram, cada um deles, parte fundamental da real grandeza que estaria por vir.
Todos se puseram em posição. Stên parecia se preparar para algo. Eis então que veio a metida já citada anteriormente e tomou lugar em cima do holofote desta vez.
— É com muito prazer que anunciamos, neste ano de—
Um tomate que mais parecia um abacate maduro brotou de algum lugar da própria embarcação mor de Stên e acertou com tudo na cabeça da metidinha.
— Me poupe! — gritou a rainha — Vamos logo começar!
Nossos heróis tremeram, mas logo tomaram coragem completa. Se colocaram em posição absoluta! Aí se surpreenderam quando seis súditas vinham carregando um trono com o dobro do tamanho de Luke lá dentro da embarcação mor. Pousaram-no de costas para nossos singelo barquinho e Stên sentou nele como em berço esplêndido.
— Ah... uma bela introdução agora. Vocês aí atrás, comportem-se! — referindo-se aos nossos amigos. Amigos esses que ficaram com cara de bobo olhando um pra cara de bobo do outro.
Mas o show de estranhice só se iniciava a si. Eis que uma das velas EnOrMeS do naviozão que estava amarrada desamarrou-se sabe-se lá por qual meio ou mecanismo e virou um imenso drive-in atlântico. Para os não entendidos por serem jovens demais, virou um telão de cinema no meio do mar. Mais umas seis servas vinham carregando um projetor enorme que, quando ligado, projetou na vela grande uma imensa ampulheta estática com uma tela de carregamento laranja atrás.
— ... PowerPoint?
Luke estava com a cara no chão. Todos estavam. Então, pra piorar, apareceram uns slides bem feios em tela cheia e uma das marujas aleatória surgiu e começou a dar um seminário de introdução à batalha.
Ficaram sem saber o que fazer por uns dez minutos, porque a apresentação iria longe. Stên parecia se contorcer da agradabilidade que sentia. Mas aí veio uma genial ideia que não poderia sair de mais ninguém a não ser de...
— A hora é essa, capitão — George.
— Hora...? Hora pra quê? Que horas são? — Luke estava atônito.
— Hora de atacar, capitão!
— Ora, mas é claro! — Reuniu todos em uma rodinha. — Muito bem, é agora ou nunca! Rion, Juan e Rojão: vocês vão se infiltrar conforme o combinado. George e eu ficaremos aqui dando cobertura, que é a parte mais difícil e somente os mais graduados e experientes estão capacitados para tal. Boa sorte! E lembrem-se... hoje mesmo vocês me trarão o tesouro mais precioso!
— SIM CAPITÃO! — responderam em uníssono, Rion abrindo a boca só nesses momentos também.
— Sshhss! — fez Stên com cara brava pra eles. — Mais respeito com a colega aqui na frente! Vocês não eram em maior número...?
— Ah, eles... eles foram pegar uma pipoca pra assistir com mais comodidade à apresentação!
— Bom mesmo! Mas é melhor que seja rápido, porque a apresentação vai levar só vinte minutos contados.
Nunca levava só vinte minutos, muito menos vinte minutos contados. Luke e George se olharam.

Rion, Juan e Rojão estavam com cordas e outros aparatos procurando uma forma de subir no navio inimigo. Então perceberam que o transatlântico stênico possuía janelinhas dos lados do casco e que uma estava aberta, uma bastante perto. Jogaram lá uma garra metálica com corda e conseguiram com ela dar uma de espião de cinema e ir feito macacos em um galho. Quando chegaram lá, viram-se em um corredor todo de madeira, bastante escuro. Estavam logo em uma esquina.
— Sou o mais experiente. Eu vou por esse lado, vocês dois por esse outro.
Disse Rojão. Então ele se foi por um lado e Rion e Juan pelo outro. Sobre esses dois últimos, Rion era o mais apressado e já estava mais à frente de Juan, ambos carregando armas de fogo daquelas que se usa pólvora pra atirar. Estava tudo ainda muito escuro, mas uma escadinha que surgira parecia levar para alguma fonte de luz. Rion subiu mas Juan acabou ficando pra trás, pois ouvira um som bastante característico...
— Mas que som mais característico...
Era o som de chuveiro, aquele chhhhuuuuu que a resistência faz pra esquentar a água. Ora, alguém estava tomando banho naquele quartinho cuja porta era iluminada tenramente como moldura dourada. Ele achegou-se e viu que a porta não estava intacta e possuía algumas falhas... Botou o olho ali e pôde ver vultos em meio de muito vapor.
— Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
E era uma linda voz feminina! Dali que ele não saía mais não.

Rojão pegou um corredor escuro bem mais longo que o dos amigos. Estava até pensando que não teria fim, ou que estava andando em círculos. Chegou então numa salinha que tinha uma lâmpada meio baixa sobre uma mesinha, uma iluminação bem fraquinha mesmo. Aproximou-se, aproximou-se... Chegou rente à mesa e viu que sobre ela estava um tabuleiro de xadrez montado, esperando só por um jogo ser começado.
— Então... aqui você está.
Uma tripulante de Stên é então percebida sentada em uma das duas cadeiras que estavam dispostas para o jogo.

Rion subira a escadinha e realmente chegou num corredor iluminado. Existiam portas por todo os dois lados. Deveriam ser quartos, só podia ser. Andou lentamente sobre aquele assoalho rangente... Pareciam estar todos vazios, deviam estar todas lá em cima prestigiando a colega na apresentação de eslaides.
Ele foi continuando e percebeu que o corredor terminava numa porta um tanto quanto diferente. Ela era uma portona de madeira meio arqueada no topo e tinha um cadeadão do tamanho de uma cabeça cabeçuda em cima da maçaneta. Era óbvio que estava trancada, é pra isso que servia esse sinal. Ora, era o fim da linha. E agora? Perguntou-se o que Luke faria em seu lugar...

— Sente-se, intruso.
Rojão tomou assento do outro lado da mesinha e olhou para a inimiga. Usava óculos, cabelos muito pretos fazendo uma meia-franja, roupas combinando o preto com o branco e o branco com o preto, feições de intelectual. Parecia bastante centrada. O olhar não era penetrante como sempre se diz na literatura média e baixa, era superficial. Mas tão superficial e perdido que intrigava. Tão superficial que era penetrante. Eram misteriosos, nada diziam. Nada. Não eram capazes nem mesmo de levantar a dúvida. Nada.
— Pareço te conhecer de algum lugar... — comentou Rojão, com dúvidas.
— Uma parte de você conhece. Uma parte de você que só pertence a um terceiro, àquele que te deu a existência e guarda uma parte dentro de sua alma.
Palavras bonitas. Mas o que tudo aquilo significava? Rojão preferiu não pensar nisso, pois era filosófico demais e essa reflexão pertence somente ao campo literário-ficcional. Teriam as pessoas reais a mesma profundidade das pessoas personagens? O que nós, leitores do mundo, estamos realçando daqueles personagens que nos cercam?
A garota, sem dizer mais nada, deu início ao jogo. Pegou em um peão e o transportou duas casas pra frente. Era irrelevante qual peão era. Rojão preferiu pegar um dos cavalos e dar um pulão sobre a fileira de guardinhas menores, colocando-o na casa que terminava o L.
— O glorioso reino de Calurn... — comentou ela.
Ela então deu mais dois passos com outro peão. Rojão deu um passo com outro. Ela deu mais dois com mais um. Ele então, na diagonal, no lugar do seu peão de vanguarda, colocou o rei. A garota demonstrou um leve choque...
— Por que não dá uma olhada no seu rei...? — recomendou ela.
Rojão achou estranho, mas o pegou na mão e aproximou mais da lâmpada que sobrevoava o campo de batalha. Ele tinha uma coroa enorme pro seu tamanho, o rei dela não tinha. Ele então entendeu. Colocou-o de volta, pegou o cavalo que moveu. O cavalo, posto em posição rampante, possuía na sela um símbolo... Era um cavalinho da Ferrari sobre um escudo vermelho portando uma coroa, coroa idêntica a do rei. Então ele se viu ali: ele estava controlando Rude, o grande rei de Calurn!
— E seu rei? — perguntou ele.
— Rei?
Ele então tomou a liberdade de pegá-lo na mão também. Não era rei... e não era Stên como pensara... Era um outro rei. Era um rei de feições tristes. Tomou um choque. Colocou-o imediatamente no lugar e foi pegar a rainha e... não havia rainha. As torres inimigas eram idênticas mas eram um tanto diferentes... eram torres bastante tecnológicas. Uma esfera que parecia fracamente luminosa ficava em cima delas. Os cavalos eram comuns, idênticos ao cavalo no qual Rojão não mexera. Os bispos não eram da hierarquia eclesiástica, mas um casal de magos que vestiam roxo e portavam cajados. Então... o nosso amigo pegou a rainha de seu lado e pensou quem poderia ser a rainha de Rude? Quando olhou bem, viu na peça do jogo a sua oponente.
— Pois agora joguemos! — disse ela, sem querer saber.

— Lalala... lalalalala... nanananaaaa....
Juan estava se deliciando com a vista. Não queria nunca tirar os olhos daquela fresta! Com sorriso que tomava todo seu rosto, apreciava as sombras em meio aquele vapor.
— Puxa, está mesmo muito quente esse banho.
— Está mesmo...
Ela respondeu ao seu sussurro não tão sussurrante assim! Então ela sabia que ele estava ali e mesmo assim continuava com o banho! Então o jogo começaria.
— Olá, quem és tu, ó aquela que se banha?
— Sou uma pirata, assim como você. A diferença é que você é um pirata.
— Gosto da sua visão.
— E você nem viu meus olhos.
— Aposto que são lindos...
— E você nem viu meu rosto.
— Aposto que é lindo igual.
— E você nem viu meu corpo.
— Aposto que é como tais.
— Você é muito gentil, ó cheio de fé.
— A voz tua não pode negar, a não ser que seja arte barroca.
— Aposto que não sou.
— Olhastes-se no espelho, objeto que transmite beleza aos mais afortunados?
— Estou olhando agora mesmo, todo cheio de sabão está.
— O objeto que te faz justiça ou a imagem refletida?
— Seriam as duas coisas?
— LOUCO está me deixando.
— Louco no bom sentido?
— Louco é sempre no bom sentido, loucura é algo que eleva.
— Que tudo eleva, imagino.
— E imagina bem e certo.
— Mas está ficando louco então?
— Louco, sim. Louco de—
ARRÁ!!!
Uma das guardas que supostamente fazia patrulha pelos corredores finalmente apareceu! Chegou perto da porta e ao mesmo tempo em que colocava algemas em Juan, disse àquela que se banha:
— Bom trabalho!
— Sei bem o castigo que ele merece. Traga-o para dentro!
Juan não sabia o que sentia.

Rion ainda não chegara numa resolução. Pensar no que o capitão pensaria é bastante complicado. Tentou mexer no cadeado, mexer dentro do buraco de fechadura dele, dar um chutão nele, mas ele só fazia sempre o mesmo som e se mexia sozinho pros lados numa dancinha.
Ta’ram! era o som que fazia.
Então olhou pros lados e percebeu que na parede ao seu lado direito tinha uma coisa estranha saindo da parede... era uma meia cinco-oitavos vermelha e preta presa na porta de uma entrada secreta! Guardou-a rapidamente e adentrou o corredor misterioso. Risadinhas vinham lá do fundo. Continuou lentamente feito gato... Quando chegou na salinha ao fim do caminho, percebeu que tinha um canto escuro. Não viu ninguém, mesmo que os sons humanos continuassem. Mas aí percebeu que havia uma chavona dourada sobre uma escrivaninha! Pegou-a e deu no pé, quem se interessava com o resto?
Quando voltou à porta trancada, encostou a parede logo atrás. Enfiou a chave no buraco e nem precisou virar: Ti’rac! foi o som que fez. Aí a chave e o cadeado desaparecerem no ar. Entrou pela porta Ti’torou’tó! foi o som que fez.

Rojão estava impaciente. Suas torres e seus bispos já eram, além de um dos cavalos! Só sobrava Calurn, Rude, sua rainha e seus peões. Enquanto isso, a oponente, mesmo com a desvantagem da rainha, não perdera peça alguma até então. Estou perdido..., pensou nosso herói. A inimiga tinha um sorriso blasé no rosto. Ela então do nada anunciou
— Novas regras!
Rojão mais perdido que cego em tiroteio ficou olhando pra todo lado. Então ela colocou um bonequinho novo logo ao lado do Rude. Era um garoto com roupas estranhas, parecia um sobretudo.
— Que peça é essa? — perguntou ele.
— Eu o chamo de “Peão mais besta”.
E era mesmo. Então Rojão assimilou e colocou Rude em cima de Calurn.
— Há!
Ela sorriu e já colocou uma outra peça do seu lado. Era uma garota com galhos como asas e pedrinhas luminosas penduradas neles.
Rojão fez careta. Mas a inimiga não viu um peão desavisado de Rojão destruindo uma torre dela, que fez com que automaticamente a outra torre também fosse derrotada. Simples assim. O problema era... as regras eram bem claras. Isso fez também Rude e seu cavalo desaparecerem! Xeque-mate? Não tão simples assim. O Peão mais besta mudou um pouquinho na aparência e apareceu no lugar do seu rei. Mas isso também fez a peça da garota alada ser derrotada, que personagem inútil!
Ainda batalharam bem, até que só sobraram os peões e o novo rei do lado do Rojão. Do lado da pirata má, só o rei e os dois magos que faziam papel de bispos. Muito embate entre o mago e o Rei mais besta, a maga se aproximava e se distanciava do rei inimigo, o rei da oponente só em crises existenciais. Aí os dois jogadores lembraram que aquilo não tinha fim. Então a inimiga de Rojão colocou uma peça loira ao lado do Rei mais besta e os dois foram embora do tabuleiro.
O desfecho foi que Rojão ficou bruxão e arremessou longe o tabuleiro e as peças que sobraram. Viu que não era o bastante pelo tempo perdido e jogou também a mesinha que o sustentava num tempo pretérito perfeito. Eita! A inimiga, de pernas cruzadas, só disse
— Ninguém ganha.
Rojão foi embora para encontrar os dois colegas.

Juan estava sendo levado pra dentro do quartinho de banho. Nossa, que quente que aquilo estava! Devia ser uma sauna, isso sim. Amarraram-no numa cadeira de madeira, o sujeito bastante determinado porque era a guarda que havia o algemado anteriormente é claro. Estava louco pra ver aquela que se banhava. Mas aí viu a farsa!
— Sou Inês.
A que falou era a que se banhava, mas não se banhava nada! Ela estava era dando banho num gato, que parecia adorar água pelando. Ela era linda inda assim, mas ora! Que papelão! Então ela tirou o gato da tina e colocou-o sobre um pedaço de papelão para que ele se secasse. Gato molhado é feio!!!!
— Gosta do que vê? — disse Inês enquanto secava a mão numa toalha de mão.
— Gosto, se estiver falando de você...
— E estou.
— Hum... minha imaginação molhou.
— E não só ela...
Ele sorria feito bobo. Era que a gatinha dela também estava bastante molhada.
— Está muito quente aqui.
— Concordo, e agora está ainda mais... — disse ela.
Era que a janela fora fechada.
— Vamos logo ao que interessa — arriscou ele.
— Vamos!
Ele abriu os braços e a gata foi jogada nele. AAAAHHHH!!!!

Rion deu num salão muito, muito escuro... parece que pisava em coisas que pareciam moedas. Começou a escorregar facilmente nelas. Aí ele achou o interruptor e acendeu tudo: estava no compartimento de tesouros! E não tinha fim!!! Eram caixas e pilhas ENORMES de moedas, de barras de ouro, de diamantes de todos os tamanhos. Esculturas de mármore, obras do Aleijadinho, lustres dos palacetes franceses, quadros gigantescos com a imagem imponente de Lucas Corrêa Gomes, grande escritor do século XXI. E isso era só o que os olhos de Rion conseguiam alcançar. Aí ele botou uns dados bonitos no bolso e decidiu voltar pra ver se chamava os amigos: o tesouro mais precioso só poderia estar ali!

Rojão estava correndo pelos corredores e achou a escadinha. Ele passou correndo mas logo voltou: percebeu por algum acaso uma barulheira infernal vindo de um lugar que soltava vapor feito louco. Aí voltou e viu simplesmente a imagem de Juan lutando com um felino nervoso enquanto duas piratas davam risada.
Aí ele pegou um balde, abriu uma janelinha, encheu de água gelada do Terceiro Mar e jogou contra os quatro personagens da cena. Todos ficaram com cara de tacho, inclusive Juan, mas ele foi resgatado rapidamente por Rojão e saíram correndo para a escadinha. Agora toda a tripulação sabia da existência deles.

Enquanto isso, na apresentação do seminário...
George e seu capitão dormiam, assim como todas as piratas que assistiam à apresentação de Samy (ela era a pirata aleatória, que importância ela tem afinal?). Só que aí Stên deu um berro.
— INTRUSOS NO NAVIO!!!!!
Luke e seu marujo quase tiveram um ataque do coração. Aí eles vazaram dali e foram pra dentro.
— MALDITOS!!!!

Juan e Rojão trombam contra Rion.
— Encontrei os tesouros, venham! O:
Aí eles o acompanharam. Quando chegaram lá... ficaram bobos. Mas aí fecharam a porta, pois sabiam que todas as piratas vinham atrás deles.
— Temos que encontrar o que o capitão nos pediu! — exclamou obviamente Juan, que era cozinheiro.
— Pois o que foi mesmo? — perguntou Rojão.
— Algo como “tesouro mais precioso” acho o:
— Pois procuremos!
Procuraram, procuraram. Não tinha tempo pra pegar mais nada de valioso, tinham que cumprir a ordem do capitão, pois era isso que os faziam honrados. Aí encontraram uma caixa... os três ao mesmo tempo. Tiraram as moedas de cima, jogaram pra lá um objeto grande e dourado que tinha um feltro vermelho dentro e uma coisa estranha no topo; não parecia valioso mesmo. Estava escrito O TESOURO MAIS PRECIOSO. Não tiveram dúvidas.

— ESTOU TÃO PREOCUPADO!
O capitão ficava pra lá e pra cá em sua cabine. George tentava acalmá-lo, mas ele mesmo estava com expressão de preocupação.
— Tudo vai dar certo, meu amigo... — ele disse. E funcionou.

Os três, fortes como eram, conseguiram carregar a caixona até a porta. Abriram e viram mais ou menos um exército de piratas os encarando. Aí eles encostaram a porta.
— Bom, vamos achar outra saída — disse Juan.
— Tem alguma ideia? — perguntou Rojão.
— Tenho!
Então ele tirou algumas batatas e alguns tomates dos bolsos. Juan era cozinheiro. Ele jogou lá no teto em sentido diagonal, esperando que encontrasse uma saída pelo teto. Só que tudo se espatifava lá em cima onde não se podia ver (o lugar era muito extenso verticalmente também!) ou caíam no chão de volta.
— Bom...
— Aqui! O:
Uma plaquinha dizia saída de emergência. Eles viraram lá uma alavanca num mecanismo cheio de cordas e uma rampa baixou. Aí eles deram no compartimento das máquinas: cavalos e mais cavalos e mais cavalos se estendiam por todo o corredor imenso! Sabiam o que era pra fazer.

Stên descia as escadas com loucura. Todo seu exército a seguia. Onde estão eles! Ela foi por outro caminho e chegou nas máquinas animalescas. Lá vinham eles no corredor entre todos os cavalos escravizados! Juan e Rion num cavalo, Rojão, o mais forte, noutro. Os dois animais corriam lado a lado no mesmo ritmo feito Velocidade Máxima, os cavaleiros equilibrando a caixona entre eles.
— Não os deixem escapar!!!!!!
As piratas esticaram cordonas no corredor pra que eles se espatifassem por ali, mas o problema é que as cordas usadas eram as mesmas que prendiam os cavalos-motores. Alguns então estavam livres! Sentiram a liberdade outra vez e se viraram contra as piratas, elas assustadíssimas correram! Só que aí desencadeou todo um reboliço e os cavalos ainda presos começaram a correr e moverem o barco! E mais ou menos vinte estavam livres, desorientando Stên e toda sua tripulação ali presente. Então eles passaram correndo por elas, subiram várias rampas que um dia foram usadas para trazer os cavalos pra lá e depois de muito labirinto chegaram lá em cima do casco! Mas o navio se distanciava do de Luke... Oh não! Mas tomaram coragem, olharam uns pros outros, os cavalos também se entreolharam e correram... correram... correram e saltaram... Foram pelo ar, voando... A lua cheia atrás, uma imagem linda se fazia (imagem essa que não fora patenteada e foi então plagiada por Hollywood). Aí eles começaram a cair, a gravidade fazendo a ação... Pousaram em segurança no navio dos heróis!! Vitória!
Luke e George ficaram muito felizes e parabenizaram os amigos.
— Meus parabéns! Parabéns a todos os envolvidos! — berrava Luke, imponente! A essa altura a frota de Stên estava muito muito muito longe e demoraria muito para tomar controle de novo de seus motores...
George estava muito feliz também. Todos se abraçaram. Mas ora... era hora de abrir a caixona.

Ficaram em volta da caixa. Luke se aproximou e continuava a falar
— Agora sim, a Coroa é finalmente nossa!
Juan e Rojão se entreolharam, confusos.
— Eu diria que ela é bastante jovem...
— Ahn? Do que está falando, Rojão?
— Ainda não entendi bem também, capitão.
Luke decidiu não dar atenção. A felicidade era muito grande. Foi arrancando os pregões com o outro lado do martelo.
— Ah... logo estarei com ela na cabeça e nada será capaz de me tirar ela...
— Colocar na cabeça? Por que você a colocaria na cabeça, capitão?
— Mas não é pra ser assim? Juan, você também está falando coisas estranhas... É uma coroa!
— Ainda acho que Rojão tem mais razão sobre isso... não é tão coroa assim...
— Ora! Do que estão falando!
Não responderam, estavam tão confusos quanto Luke. George olhava tudo inexpressivo, só faltava uma tampa de caneta no queixo.
O último prego foi retirado! Então a tampa foi levantada e deixada logo ao lado.
=D era o que estava em sua face. Nada menos e nada mais que isso.
— Sim! SIM! O tesouro mais precioso!
Então ele colocou os braços dentro da caixa com a expressão mais extasiante de todas e se jogou com tudo pra trás com uma cara impagável que, seria outra ocasião, todos rachariam o bico.
— MASOQ

Os outros se achegaram mais. George o mais curioso. E então ele disse
— Mas que curioso...

Saía da caixa uma pirata com olhos de fubeca.