OLHOS DE FUBECA - Questão de Semântica, A Face Oculta do Rei, A Frota Celeste
QUESTÃO DE SEMÂNTICA
Luke
estava em choque ali num canto. Olhava descrente. Os quatro marujos se dividiam
perfeitamente ao redor da caixa, um de cada lado do quadrado. Eles estavam
absortos no que presenciavam, era até mesmo inacreditável, coisa da fantasia!
Do conteúdo da caixa só se via o cabelo escuro, a testa e os olhos curiosos
observantes.
—
Como são grandes... — observou Rojão, aturdido.
—
Grandes mesmo... que olhos... — George comentou, os achou belos. Ele não
entendeu.
Juan
nem mesmo conseguia comentar algo. Rion estava mais preocupado com o estado
emudecido do capitão. Mas o estado de choque deste duraria muito menos do que o
do cozinheiro.
—
Mas... — soltou o capitão baixinho, sem querer, porque não queria dizer nada. O
que escapara por sua boca era seus pensamentos, que não engatavam dos “mas” e
dos “o quê”.
Então
a pirata se levantou. Vestia-se totalmente diferente das marujas de Stên, pois
essas tinham um mau gosto conhecido e reconhecido por todos os Mares. Esta
estava deslumbrante, formosa, com um uniforme que mostrava superioridade digna
de capitã. Só seu olhar era o bastante para sugerir que era capitã. Luke que se
cuidasse, pois já tinha ele dois marujos que poderiam colocá-la em seu posto a
qualquer momento. Nem mesmo preciso citá-los.
O
capitão então começou a ser encarado por ela. Ele começou a balançar a cabeça
em sentido de negação, meio que inconsciente do ato.
—
Eu não acredito. Eu não acredito. Eu não acredito nisso. Eu não acredito nisso
mesmo!
Dizia
com risadinhas nervosas entre os períodos, não parando de movimentar a cabeça
fazendo não. No mesmo, levantou as sobrancelhas e abriu um pouco os olhos como só
ele sabia fazer.
—
Nós também não! — disse Juan finalmente, mas sem sair do seu estado de transe.
—
Onde raios está a bendita coroa!
Agora
os marujos olharam pra ele, assustados. Era a coroa que ele queria?
—
É claro que era!
—
Por que não foi mais claro? — falou Rojão, sem paciência. — Não temos bola de
cristal! A última foi destruída lá na época dos alquimistas, lembra? Ou já
esqueceu das aulas de História?!
—
Estava implícito! “O tesouro mais precioso” remete automaticamente a “Coroa de
Rude”, não é por isso que lutamos e navegamos?! Isso é tão claro quanto o dia!
—
Sim, um dia bastante nublado e ainda por cima com eclipse total!
—
Não vou discutir com você.
—
Sabia que não deveria ter me juntado a você, Luke. Você é como sempre foi, não
mudou nada.
—
Já disse.
Deu
uma última olhada para a pirata, que não sabia o que fazer. Ele ia falar algo,
mas desistiu. Subiu para seu quarto. Trancou-se lá.
Ficou
o maior climão.
Rojão
também foi pro seu canto mas não o seu quarto. Era um dos cantos da parte de
trás do navio, ficou lá olhando o mar com cara de bravo. Luke e ele eram
iguais, assim como todos os que discutem. Os dois emburrados e separados e uma
visita no local, que deselegante! Que má primeira impressão dos anfitriões!
Tudo bem que ela não era esperada, mas onde estão os bons modos?
George
e Juan, principalmente George mas Juan fazia que era principalmente ele,
levaram a pirata para a sala de jantar. Ela ainda sentou à cabeceira da mesona,
lugar reservado a Luke. Juan correu em trazer um copo d’água pra ela, ela bebeu
sem dar muita atenção ao ato ou assim parecia. Ela estava meio assustada e com
muita razão. Além da doce recepção, ficar dentro daquela caixa por sabe-se lá
quanto tempo também foi muito confortável e agradável. Ela não era lá de se
fazer de vítima, então logo se recompôs. Percebeu que tinha algo muito melhor a
fazer. George aconselhou a mesma coisa:
—
Se você pudesse conversar com eles... Os quartos ficam por aqui.
“Tudo
bem” foi a primeira coisa que dissera. E assim se esperava que tudo ficasse,
como palavra mágica.
O
pirata sábio a acompanhou até a saída da cozinha, que era onde começava o
corredor dos quartos. Ela foi até o quarto de Rojão, mas estava desocupado.
Então subiu as escadas e foi bater à uma das portas do capitão, porque o dele
era o maior e também era seu escritório então tinha duas portas. Sem resposta.
Tentou abrir a porta, mas estava trancada por dentro. A outra também. Bateu à
essa outra.
—
Rion. Não quero falar com ninguém.
—
Sou eu.
Estranhou
a voz fina. Ele nem se lembrava direito do conteúdo da caixa, estava muito mais
atento ao caso da caixa.
—
Vá embora você também.
—
Larga de ser bobão.
Olhando
tolamente para o horizonte marítimo, levantou a cabeça derrotada de quem tem o
ego atingido e olhou com estranhamento pra porta. Luke não é acostumado a ser
desrespeitado assim! Agora nem lembrava mais de coroa ou de caixa, ficou alguns
segundos sem saber o que fazer com aquela voz o insultando!
—
Vai abrir? Ou vai continuar sendo o coitadinho da situação?
Abriu
a porta e deu de cara com aquela baixinha atrevida.
—
Posso entrar?
Antes
de resposta ela já estava dentro. O capitão encostou a porta e voltou à sua
observação do horizonte.
—
Meu nome é Paloma.
—
Muito prazer.
Nem
olhou na cara.
—
Por que está emburrado? Não gosta da minha presença?
—
Não é diretamente isso. Indiretamente é.
—
Eu só não reclamo muito de você porque ficar numa caixa a bordo de um navio com
gente inútil ainda consegue ser pior.
—
Não me agradeça.
—
Não estou agradecendo.
—
Por que veio aqui?
—
Por educação.
Silêncio.
—
Acho melhor eu ir ou essa história não vai andar.
E
ela se foi. Luke a observou sair e encostar a porta. Olhou um pouco pro chão.
Logo voltou a olhar o horizonte. Pensava mais no conteúdo do que no embrulho.
Rojão
continuava lá, olhando o nada. Estava com um grande nada no peito. Ninguém
gosta de discutir, muito menos discutir com alguém que poderia até ser uma boa
companhia... A novata chegou perto dele.
—
Espero que seja mais suportável que seu capitão.
—
Qualquer um é.
Não
concordou ou discordou. Também olhou lá pro fundo do céu. Estava pensando se
alguém ali além de George era capaz de gentilezas. Mas não gostava de julgar
assim, passionalmente. Nada até ali fora exatamente agradável, mas não era
momento de fazer decisões. Estava a bordo não fazia uma hora direito. Quais
eram as outras faces que todos ali guardavam? Sempre esperando o melhor... ela
nunca aparentou que esperava sempre pelo melhor, que tinha um otimismo maior do
que os maiores filósofos da modernidade, aparentava sim ser sempre fechada,
alguém que faz as coisas de forma automática, já não esperando nada a frente.
As aparências podem enganar, enganar até mesmo aquele que julga entender todos
os atos aparentes, e é nessas horas de confusão que uma estranha porém
inabalável curiosidade brota, podendo transformar-se alquimicamente em algum
sentimento mais nobre.
Os
dois ali não falaram nada. Aproveitaram o breve momento juntos em silêncio. Ora,
Rojão, mesmo com seu temperamento explosivo combinando com as armas que maneja,
era boa gente, amante das belas letras, principalmente das belas letras
poéticas, pois existem as belas letras não exatamente poéticas que pela prosa
podem resvalar na poesia. E Paloma era poesia. E poesia se curte no silêncio,
no vagaroso pensar após a lida, pois informação alguma se obtém da leitura
dela. A leitura poética vem de dentro, não vem do texto. Poesia é completa
incerteza, incrível dúvida, uma ambiguidade que não está escrita mas que é
sentida.
Todo
o cenário estava banhado pelo sol dourado. Um sol dourado que, aliás, está
presente em cada momento de todo este relato. Não nas noites, não nas chuvas,
não nos tempos nublados, mas sua luz e seu calor são sentidos desde o início
até o fim. Inexplicável fenômeno. Sua iluminação era forte, mas a sombra estava
sempre ali também, mas até na sombra você sentia que ali tinha luz. A luz
dourada solar. Pois com a existência da sombra era possível compreender a
existência da luz, então as duas coisas juntas só poderiam dar um belíssimo
resultado: a sensação de completude, de harmonia com a natureza e seus ciclos.
Era
nesse jogo de opostos que Luke se encontrava.
A FACE OCULTA DO REI
Nesse
jogo de opostos Luke se encontrava e também em seu quarto, olhando a mesma
coisa que esteve olhando por quarenta minutos, mas não no mesmo pensamento de
um minuto atrás. Sentia que algo muito estranho estava acontecendo, não só
externamente como também internamente, dentro de sua alma. Problemas exteriores
são simples de se resolver, como capitão ele não necessita de ajuda, nem mesmo
de conselheiros. Luke os resolvia com nitidez, uma nitidez paga por um bom
momento solitário de reflexão. Porém, problemas internos eram complicados. São
problemas que não podem ser resolvidos sozinhos, pois foram causados por
agentes de fora. Se o interior de um homem ou de uma mulher é atingido por elementos
externos, estes sendo pessoas más ou mal compreendidas, ele só poderá ser
reparado depois de longo tratamento com alguém que lhe dê conforto, segurança,
consolo... fatores também externos, que não podem ser totalmente criados
artificialmente por nossa própria alma. Quando nos sentimos abalados,
recorremos à mãe, ao pai, mesmo quando eles se foram há muito tempo. Precisamos
deles mesmo quando adultos, principalmente quando velhos, ainda mais
principalmente quando eles estão fora de nosso alcance...
Por
isso Luke tinha Rion sempre ao seu lado. Com o título de braço-direito, o
confiado marujo sempre estava ali para fazer companhia ao amigo-capitão, pois
se sentia bem também com sua presença. Seu título confundia, é claro, pois
braço-direito do capitão parece ser um conselheiro, aquele que está dando
sempre assessoria ao chefe. Mas o que dava era assessoria espiritual, algo que
somente os amigos verdadeiros são capazes de dar, sempre inconscientemente,
sempre sem fazer força, sempre espontaneamente.
Luke
chamou Rion ao seu lado e ficaram horas a fio num monólogo interminável. Em
certos momentos, o capitão estava nervoso, para logo depois acalmar-se. Olhava
pela janela, parecia acompanhar a todo o momento cada escorregadinha do sol lá
em cima, pois o sol já escorregava com preguiça pelo manto azul lindo e queria
logo ir visitar seus colegas orientais. Os colegas do sol ainda irão ter sua
chance de aparecer neste relato. Mas a verdade é que Luke falava e falava,
estava em uma dança incontrolável, pegando as palavras e fazendo-as dar saltos
aéreos perfeitos, elas nem mesmo acreditando! Rion dava o ar da graça por
vezes, mais para confirmar que ouvia do que para complementar algo para o
amigo, então estava sempre soltando frases desconexas de contexto, arrancadas
do longo discurso do capitão e jogadas no ar mais uma vez aposto de comentário,
só para fazer graça.
Já
era muito noite quando cessou o falatório. Já estava cansado e com a mente mais
tranquila. Era hora da janta.
O
capitão tomou assento à cabeceira da mesa. George já estava lá à sua direita
despontando uma das fileiras junto à mesona. Rion foi à esquerda de Luke e ao
lado de Rojão. Neste momento é que se percebe a arte que é descrever lugares em
uma mesa de jantar, uma arte a qual não domino inteiramente. Por este motivo, o
leitor curioso pode tentar decifrar as palavras narrativas acima e tentar
colocar tudo em seu devido lugar. Os mais imaginativos podem colocá-los por
toda a mesa como bem querer. O que não se atém a miudezas, simplesmente ignorar
este parágrafo.
Somente
ao leitor metódico e interessado interessa a colocação dos elementos, pois ela
reflete a chegada dos marujos à tripulação lukiana. Ordem de chegada que também
não interessa nem um pouco a alguns, então, novamente, venho em sua ajuda dizendo
que poderá pular o próximo parágrafo também.
Luke,
é claro, deu o primeiro passo para a formação do grupo. George já era o número
dois desde então. Com Rojão e Edil, teríamos os números três e quatro, ou
quatro e três, isso já não importa mais por ser passado. Com o cisma, Luke
trouxe finalmente Rion, o número três. Porém esses dois números não faziam
muito sentido para o coração do capitão. Então ele destinou os dois lados da
mesa, ficando um de cada lado, os dois sendo o número dois. Ideia ousada, com
certeza, pois quebra com os cânones de colocação de pessoas à mesa de jantar.
Com a chegada de Juan (e tanto a história por trás de Juan como a de Rion serão
contadas em tempo bom para tal), uma cadeira foi colocada para ele ao lado de
George. Para não trair a simetria, colocaram uma outra desocupada do lado oposto,
ao lado de Rion. Foi o lugar que Rojão tomou com seu retorno. Logo depois,
com a chegada de Paloma-
Ela
(Paloma, para aqueles que pularam o parágrafo anterior) adentrou o salão de
jantar onde também está a cozinha de Juan carregando uma cadeira que nada tinha
a ver com o estilo do jogo de móveis para cozinha adquiridos. Eram móveis
escuros naquele local, ela trazia uma cadeira vermelho-aguado. Luke percebeu
que era uma cadeira que ficou tomando sol e chuva lá em cima, por isso descolorou,
mas assim mesmo não era daquele jogo. Todos ficaram só olhando com os garfos e
facas em mãos, pois o tempo que tomou a explicação sobre a ordem das cadeiras
foi o suficiente para a macarronada de Juan já ter sido servida. A
recém-chegada então atravessa todo o salão sendo o alvo das atenções e coloca a
cadeira entre George e Juan, local em que sentaria dali poucos momentos.
Peço
agora perdão por ter citado novamente a posição das cadeiras. Aconselho, não
tendo mais remédio, àqueles que pularam o parágrafo explicativo que retornem a
ele e logo após tal leitura partam para o próximo.
Rojão
e Juan, quando caiu a ficha, deram um pulo de suas cadeiras e batalharam
risivelmente pela conquista de pegar a porcelana e os talheres para a penetra.
—
Não, não vou comer — disse ela, não ligando lá muito praquele espetáculo por
sua causa. — Só trouxe minha cadeira pra mais tarde. Preciso de um banho.
Luke
fez que não viu e que não ouvia. George olhava pra ele esperando reação, o
capitão sabendo disso e tentando ao máximo esconder suas órbitas oculares
espiando de canto de olho enquanto enfiava um garfaço de espaguete garganta
adentro. Aí viu que ela também olhava para ele, depois de certo esforço por
parte dela, pelo que parecia. Então olhou pra ela, mastigando, e falou de boca
cheia.
—
Agora quer luxos também? O que virá depois? Pérolas do Sétimo Mar ™, aquelas
mais preciosas que são leiloadas nos canais religiosos por toda a madrugada?
—
Luxo? Estou pedindo um banho!
—
Você pode muito bem mergulhar no mar e depois retornar, o que acha? A noite
está agradável, será agradabilíssimo.
—
Vocês não tomam banho não?! Nem você, George?
—
É claro que tomo! — que absurdo para ele! Ele sempre deixa visível quando ouviu
um absurdo! — Nós temos aqui banheiro com ducha quente.
—
O que custa me deixarem tomar um banho? Fiquei muito tempo dentro daquela
caixa... olha minha roupa!
—
Vai querer um tanque de roupas também? Tome banho nele, assim já mata dois
coelhos com uma só cajadada. E gasta menos água também. E não gasta energia, a
conta mês passado veio um escândalo, tudo por causa dos banhos intermináveis de
Juan — olhem só, ele faz que não é com ele, sempre está disfarçando-
—
Chega! — levantou de súbito ariano, causando em Juan e Rojão, que já estavam
sentados novamente, loucuras naqueles poucos segundos. — Vocês são uns
insuportáveis! — sendo que só Luke era, de fato, insuportável. Para ver como um
bom líder consegue ser a própria imagem de um grupo inteiro. — Exceto você,
George.
Ela
foi feito louca pra saída mas Luke cedeu.
—
Tudo bem. Bom, quem quer acom- — Juan e Rojão já iam ficando de pé — George,
por favor, mostre o banheiro a ela. Temos sabonete perfumado, somos piratas
direitos. Um pra cada um. Tem um pacote sem abrir no armarinho de lá. Rion, por
favor, pegue lá no meu quarto um daqueles xampus que ganhamos na quermesse como
consolação. Queríamos a Maçã-do-Amor que era o prêmio principal, mas aquelas
latinhas são impossíveis de serem atingidas hehehe...
Luke
olhava pra Paloma lá longe enquanto dava risada besta como tentativa de pedir
desculpas. Ela olhou muito, mas não riu não. Então ela foi com George; Rion
saiu logo depois.
—
O que estão olhando? — perguntou pros dois restantes. Aí percebeu que tinha
brigado com Rojão, que cabeça! Virou a cara.
PEQUENA PAUSA POÉTICA
Em lugar tão
próximo porém tão distante, uma tempestade. A nuvem plástica produzia,
acompanhada de um som contínuo e quente, um despencar de água que devastava
toda a superfície clara e lisa, delicada e macia. Fenômeno natural tão
aguardado e desejado, sua devastação era prazerosa. Levava todas as
indesejáveis impurezas que a seca e o árduo trabalho traziam. A inundação
deslizava pelas minas de preciosidades, dirigia-se para as ondulações do mel,
corria sobre os grandes montes enquanto também abria caminhos no grande vale,
atravessava os prados de límpido arenoso terreno quando finalmente alcançava a
fonte natural, quando toda a enchente se dividindo por dois caminhos encontrava
forma de consumar sua missão e tocar o solo. Gotas da chuva não natural, chuva
de verão com sua água em elevadas temperaturas, não sabes do privilégio que
possuis de deitar-se e rolar-se por toda esta terra desejada e alcançada tão
somente por tão poucos aventureiros tão desventurados por tanto desconhecerem o
valor de atingirem aquele tão confortável tão hospitaleiro tão sensível
terreno.
Quando
Paloma chegou à cozinha, não havia mais ninguém. Viu que seu prato e seus
talheres ainda estavam em seu lugar. Correu os olhos por todo o largo cômodo de
madeira e encontrou o fogão, a panela de macarrão sobre ele. Estava já pegando
com o pegador uma boa porção do alimento, parecia delicioso, quando a porta
logo atrás faz seu rangido do abrir e alguns passos que logo começaram cessando
foram ouvidos.
—
Ah, já está por aqui — disse Luke depois de certo aflitivo tempo olhando as
esferas brilhantes da colega e, disfarçando, sentando em seu lugar à mesa. —
Que bom. Aproveite que dessa vez sobrou.
—
Você não consegue ser mais ríspido?
—
Por quê?
—
Acho que não, parece que você seria se conseguisse.
A
verdade é que Luke acordava logo depois de Paloma sentar-se em sua cadeira que
não combina com o jogo de móveis.
Em
algum canto longe demais para se reconhecer onde é, Stên reunia-se com as suas
principais marujas, incluindo Samy, que além de feinha tinha um namorado muito
estranho, tal não presente. A sala de reuniões era um tipo de misto entre o que
foi citado e uma sala do trono: a capitã sentava-se em um cadeirão de madeira
mas almofadado azul-escuro, logo atrás de uma mesa meia-lua mas quadrada
branca, sobre a qual um maquinário de décadas atrás repousava. O resto da sala
compunha-se de quarenta cabines onde quarenta marujas se encaixavam, cabines
essas equipadas por fones de ouvido antiquíssimos que pressionavam as orelhas e
amassavam o cabelo. Era que o maquinário da pirata-mor servia para transmitir
sons para as cabines e vice-versa. Tal sala fora muito utilizada para formação
de piratas e agora servia para reuniões, já que todas as salas livres viraram
quartos devido o grande número da população stênica. As paredes eram forradas
por mapas e dizeres em língua estrangeira. O mapa do Terceiro Mar era o maior
de todos e dependurado logo atrás do trono. Muito detalhado, etiquetinhas
demarcavam locais de interesse. O brasão real encontrava-se acima do mapa e
moldado em ferro e chumbo, com espadas de prata cruzadas atrás do escudo.
—
INCOMPETENTES! — Este e os berros que se seguirão foram dados por microfone,
com o justo intuito de arrebentar os tímpanos das citadas incompetentes, que
ouviam a bronca passivas em suas cabines. Samy, uma loirinha sem graça e outra
um tanto acima do peso com óculos estranhos coloridos eram privilegiadas,
portanto ouviam a bronca fora das cabines, sentadas mais próximas da chefe. —
Como é possível que vocês não conseguem fazer nada direito?! Como conseguiram
os deixar escapar?! Como deixaram levar aquela maldita caixa?! Como deixaram
acontecer isso de nossa frota perder o controle?! COMO?!
Respirou.
Deliciou-se observando suas empregadas encharcadas. Aliviou um pouco da fúria e
voltou a falar, incrivelmente retornando ao tom de voz leve que sempre é quando
ouvida dos fones.
—
Tudo bem. Olhem aqui agora. Veem aqui no mapa, este alfinete vermelho? Sim,
este aqui do Terceiro Mar, minhas águas. Estas são as Ilhas de Parnaso. É para
onde estamos indo! Lá fica situado meu grande palácio terreno, é em seu
interior onde iremos esconder a Coroa de Rude. As ilhas são muito bem protegidas
pela ABL, a Associação Bipartida Legalizada; o primeiro escalão de minha Guarda
Real.
Todas
espantadas. Observação necessária para uma quebra em uma fala tão enorme sem a
utilização de aspas. Continuemos então por meio desta experiência com a
linguagem:
—
Felizmente já estamos no caminho, depois da tão complicada tentativa de
organizar os motores. Perdemos algumas companheiras, mas tenho certeza que,
como as cobras marinhas que são, irão muito bem se adaptar ao universo aquático
juntas aos tubarões. Logo estaremos entrando em meus domínios, então estão
dispensadas para irem aos seus postos.
Acabou
cedo, como sempre. Felizmente, como sempre.
Logo
depois de todas terem ido e logo antes de Stên levantar, a mesma abriu uma
pequena gaveta para verificar se tudo estava nos conformes. Estava lá o
famigerado retrato, como esperava que estivesse mas sempre temesse que não
estivesse. Ah, o perfume ainda saía dela... Aquele perfume! Nunca a
perdoaria... O retrato lhe trazia esperanças. O rosto do espelho eterno
trazia-lhe justificativa para o que fazia.
A
Coroa de Rude era sua última esperança.
Mas
ainda precisava do tesouro de volta.
Depois
de muito andar e subir escadas, chegou ao convés de seu naviozão. Estava
abrindo caminho entre as marujas atarefadas e atrapalhadas quando olhou para
cima e teve um choque. O formato das nuvens a assustou, o mero formato das
nuvens. Retornando naquele estilhaço de momento ao muito pretérito tempo em que
podia olhar para as formas das nuvens, sonhar e sentir o gosto de algodão-doce,
Stên assustava-se com a forma que via.
—
Não pode ser... — murmurou.
Tirou
rapidamente de dentro de suas pomposas roupas que nunca eram repetidas (nunca!)
uma bússola com mais ponteiros do que devia ter. Olhou aquele brinquedo, pois
creu por toda sua vida que era um brinquedo... mas nunca teve real fé, pois
sempre o guardou esperando o momento em que olharia para as nuvens e veria a
forma que acabava de ver. Não pode ser... mas o brinquedo, rodando feito louco,
contrariava: sim, pode ser.
Diziam os sábios
que a aversão precede a atração. E mais certos eles não poderiam estar. Mesmo
que, algumas vezes, a atração precedesse a atração total e definitiva. Claro
que, mesmo a contragosto de tantos, a atração inicial precedesse a total
destruição.
Uma
voz do inconsciente de alguém que dormia.
George,
em seu quarto, não dormia. Estava estudando seus mapas, tentando entender para
onde Stên teria ido. Pelo que parecia, seu localizador já tinha passado da área
de cobertura, cortesia de sinal da operadora. Os paradeiros possíveis eram
muitos, mas lhe parecia muito claro que o Terceiro Mar e além era o local onde
elas estariam. Daria essa informação logo de manhã ao capitão. Aproveitou o
tempo livre que teria e foi visitar a não convidada. Abriu a porta dela com
delicadeza, achando que ela estaria dormindo, planejando representar a figura
paterna de cobrir melhor aqueles que dormem, mas surpreendeu-se ao vê-la
acordada, sentada à cama sem se arrumar para dormir àquela hora da noite,
olhando ao horizonte. Ela ficou aliviada ao perceber que não era ninguém além
do sábio pirata.
—
Ah, ainda acordada?
—
É, George, eu não consigo dormir em lugar nenhum além da minha própria cama —
justificou com aquela voz alegre e triste que só raros momentos indescritíveis
conseguem causar.
—
Então você ficou sem dormir todo o tempo em que esteve na caixa?
—
Não, eu dormi. Muito mal, mas dormi. O cansaço acaba vencendo.
—
Então toma uma balinha — tirou então do bolso um saquinho branco de papel
recheado de balas de embalagem marrom e dourado.
—
Não, George, obrigada.
—
Pega. É pra adoçar a vida.
Então
deu-se o verdadeiro início de uma série de acontecimentos que seriam
recorrentes dali pra frente. A vida, amarga, teria de ser levada pra frente à
força da esperança que uma simples degustação daquela bala, doce. Era um rito
de iniciação, não conhecido conscientemente por nenhum dos dois presentes, mas
que era sendo repetido desde o início dos tempos. Uma vez aceito o doce, não
havia mais volta. O sabor expandiu desde seu núcleo no centro da língua,
espalhou-se pela mesma superfície, aguçou toda a boca num pequeno arrepio. A
vida se tornava açucarada. Nada mais importava. O simples existir era doce e
uma experiência deliciosa.
—
Quando eu era criança, meu pai contava pra mim uma história sobre um casal que
dividiu a bala mais gostosa de todas e salvou um reino.
—
Aaahh! A minha mãe também me contava essa mesma história! — e George ficou
feliz como nunca.
—
Mas ele nunca me contava o final... como uma história de um macaquinho
malandro...
—
Você quer saber o final?
Era
uma vez, um rei muito inteligente, mas triste. Triste porque, além de ser muito
comum as histórias e os sonhos contarem com reis tristes, ele sentia que perdeu
toda a vida enfronhado em seus livros enquanto todas as pessoas à sua volta
partiam para sempre... Um dia, acordou e, olhando pela janela para seus
jardins, percebeu que estava totalmente só em seu palácio e em seu reino: as
casas estavam abandonadas, destruídas; os jardins, mortos, marrons; os cômodos
de sua morada, vazios, cinzas... viu-se só no alto de sua torre, rodeado por
livros, livros, livros e anotações próprias sobre todos os assuntos.
Então
teve uma grande ideia! Colocaria, pela primeira vez, todo aquele conhecimento
seu em prática. Transformou seu quarto em um laboratório. Criou para si
soldados, pois um rei não poderia viver sem soldados. Pareciam humanos, mas não
possuíam alma. Eles eram projetados para protegê-lo e nada mais. Sentiu ainda
mais tristeza... deitou-se na cama e chorou.
Outro
dia alvoreceu escuro, então decidiu fazer outra experiência. E se ele criasse
para si um amigo? Mas como faria isso, já que suas criações não eram humanas
além da superfície? Procurou, então, dentro de si uma memória muito forte de um
amigo. Foi indo ao passado enquanto mergulhava em seu coração, até que
conseguiu reconstruir uma sólida imagem de sua convivência com seu melhor
amigo, tanto tempo atrás, quando ainda não era rei e nem sonhava com essas
riquezas todas... Então repetiu a experiência, desta vez com amor, cumprindo
cada pequena etapa com um sentimento nobre e feliz. Tudo tomava forma e vida,
até que estava pronto!
Mas
seu amigo nascera assustado, não sabendo o que fazia... Quando viu seu criador
que o chamava de amigo, palavra desconhecida a ele, ele fugiu do palácio. O rei
ainda tentou chamá-lo lá de cima, gritando enquanto seu amigo corria
atravessando o jardim real... O rei, mais uma vez, dormiu triste.
Agora
uma semana se passou e algum ânimo se reacendeu em seu íntimo. Agora não
tentaria um amigo, mas sim uma amada! Ela seria sua rainha e os dois poderiam
dar vida novamente a tudo aquilo. Mergulhou de novo, procurou sensações,
encontrou lá a imagem do amor que sentira por uma mulher, quando ainda era
príncipe. Era uma mulher da plebe, ele jamais poderia chegar até ela. A verdade
é que ela sentia o mesmo por ele, mas o que fazer? Então o amor permaneceu
proibido até hoje, mas o sentimento somente adormecido: a mesma angústia
juvenil cresceu dentro de seu peito! Com aquele sentimento conflitante entre
dois sentimentos opostos, misturado com a memória tão vívida da moça, suas mãos
formaram novamente sua amada. Mas ela, quando acordou, olhou para ele e
estranhou: quem era aquele homem velho, mal arrumado, com feições tão sofridas
e angustiadas? Ficou assustada de início, susto que se tornou pavor quando ele
se aproximou com aquele sorriso destreinado, então ela fugiu, fugiu como o
amigo. O rei, ah, o rei... meses não foram o bastante para deixar passar toda
sua tristeza.
Fechou-se
totalmente dentro de seu quarto. Fechou as janelas, não antes de atirar por
através delas todos os livros e amontoados de papel que foram os responsáveis
por sua vida em branco e preto.
Depois
de tanto sofrer em silêncio, não via alternativa a não ser botar fim em sua
própria existência inútil. Abriu a maior janela do quarto, o sol, forte como
nunca o vira, cegou-o por instantes. Quando já se acostumava à luz, trepou no
parapeito e olhou para baixo, já tomando o último inspirar da vida... e a vida
entrou por suas narinas de tal forma que em seu coração florescia o amor, pois
finalmente a semente encontrava terra fértil onde brotar.
Seu
reino estava novamente vivo! As casas, povoadas e com a fumacinha saindo de
suas chaminés; os jardins, vivos e coloridos; os cômodos do palácio,
transmitindo risinhos e conversas animadas. O céu com nuvens cobrindo um pouco
o sol para que o mesmo pudesse brilhar com esplendor dentre suas macias
barreiras. Seu coração, palpitando como nunca o fez.
Suas
duas maiores criações, o amigo e a amada, se encontraram e por todo esse tempo
estavam cumprindo as promessas do amor. Trouxeram de volta todos os habitantes,
reconstruíram todo o reino, cuidaram do jardim real para que o rei também se
sentisse feliz, pois entenderam o nobre sentimento que se escondia por trás de
todas aquelas muralhas de sua frieza. Também estavam reformando todo o palácio por
dentro, para que a família real pudesse ser, um dia, renovada e ser justa como
um dia, há muito, fora.
Então
o rei desceu feliz vendo todos de volta pelos corredores que já foram tão
solitários. Quando chegou ao hall e atravessou as grandes portas, rumando ao
jardim, foi felicitado por todos e o casal, sua criação, o presenteou com uma
bala caramelizada. Então aquele se tornou o símbolo de como tudo se torna doce
quando feito com amor.
O
rei viveu feliz seus últimos anos de vida, pois já era velhinho. Partiu feliz.
O amigo e a amada tornaram-se então reis e governaram a terra sob o jugo do
puro bem. Tiveram muitos filhos.
—
...e dizem que Rude, o rei de Calurn e ex-proprietário da coroa que Stên detém,
é dessa nobre linhagem...
Paloma
já dormia, dormia com um sorriso infantil no rosto, dormia feliz. George estava
ainda mais feliz. Cobriu-a melhor, apagou a luz e saiu, encostando a porta com
extrema delicadeza. Somente o luar completo do astro presente em sua plenitude
iluminava as cobertas geladas de duras águas e as cobertas quentes de macio
pelo. “Ela continuou sem saber o fim...”.
Rojão
escrevia um poema em sua máquina de escrever cor de oliva à luz da lamparina. Buscava
inspiração. Olhava o mar, a lua; conseguia alguma ideia e teclava tá, tá, tá tá tá tá, tá tá. Terminava o
verso claang, tluuung.
Tá pámálá t’ántráun
t’án mán cáráçán –claang, tuntluung
Tás nán t’ólvádá
ránátá! –claang, tuntuntluung
Táh! tápq tán tómántê
t’ónma tsó –claang, tuntuntuntluung
Tmá cáráçán tnón t’éscátlhê!
— pling.
Tuntuntuntun.
Vrááááá!
...
Tralhalhulhulhum.
Tuntuntuntuntuntun.
Melhor
ir dormir.
Juan
lia seu livro de receitas.
Rion
fazia nada.
Luke
dormia feito pedra.
A FROTA CELESTE
Naquela
manhã, todos tomavam café juntos. Tudo parecia muito bem. Pareceria talvez a
alguém que chegasse de repente à cozinha, pois todos ali sentiam o peso daquele
clima. Muitas adversidades estavam presentes, mas nenhuma era mais forte que o
incômodo de Luke com aquela bendita cadeira que não combinava de jeito nenhum
com os móveis da cozinha. É incrível a simbologia disso, pensou o capitão. Ela
trazia o caos até mesmo na hora das refeições. A utilização repentina do
discurso indireto livre é também uma tentativa de encaixar forma e conteúdo: a
aparição da imagem feminina cria um desequilíbrio no antigo equilíbrio, mesmo
que o anterior equilíbrio tenha sido uma bagunça, trazendo por fim uma ordem
que não se pode entender até que esta não chegue.
A
utilização do discurso indireto livre é que isso vai extremamente contra a
filosofia literária da recém-chegada, que prefere sentir ao interpretar demais
para se procurar, forçosamente, um sentimento que, no fim, não será da mesma
intensidade que seria se a linguagem tivesse sido mais direta.
Essas
são discussões que aparecem naturalmente no café da manhã. Nenhum “como foi a
noite de vocês?”.
—
Como foi a noite de vocês? — perguntou ela, criando estranhamento geral, não em
George na verdade, pois este já respondia com alegria:
—
Foi ótima! Dormi muito bem.
—
Não dormi direito. Tenho que arrumar meu relógio biológico — respondeu Rojão.
—
Foi uma boa noite, já me animou a testar um prato novo nesse fim de semana! Só
precisamos passar no mercado.
—
Foi boa acho. — respondeu Rion sem ligar.
—
...
Ficaram
na espera por Luke, mas ficaram só nisso. Estava tomando sua xícara longamente
para preencher tempo quando sentiu uma fisgada sensitiva de que alguém o
encarava com olhar profundo. Olhou por cima da louça e percebeu.
—
Você nunca responde? — perguntou ela.
—
Estou muito mais acostumado a fazer as perguntas.
—
Isso explica muita coisa.
George,
de uma vez, entendeu tudo. Guardou um sorriso para si e sabia o que esperar.
George era muito sábio além de sabido.
Passaram-se
horas e Paloma já estava muito amiga de Rojão. Juan acabou se distraindo um
pouco na cozinha. George estava lendo o romance Uma Abelha na Chuva perto de onde conversavam, ali numa parte do
convés onde a luz do sol batia. Ainda bem que o tempo não estava pra
tempestade, pois o barco deles no meio do mar seria a mesma coisa que uma
abelha tentando voar sendo assolada por gotas pesadíssimas para seu corpo.
Muito pelo contrário, o céu estava límpido; um fim de manhã muito maravilhoso.
—
Como você veio parar aqui, Rojão?
—
É uma longa história. Eu fui sequestrado e acabei me juntando à equipe. Mas já
ando me arrependendo.
Estavam
os dois um do lado do outro, debruçados no parapeito do casco.
—
Que coisa horrível de se fazer. Sequestrar alguém.
—
Luke sempre foi problemático.
—
Desde quando o conhece?
—
Faz uns dois anos... George, ele, eu e Edil (um amigo) nos encontramos pela
primeira vez na Pousada de Gales.
—
O maior hotel para piratas dos Sete Mares.
—
Lá mesmo. Parece que todos decidimos fazer uma visitinha à festa de comemoração
pela derrota de Stên ao tentar privatizar a Pousada. Fomos conversando e
acabamos tendo a ideia de criar uma frota, pois todos estávamos desocupados e
loucos para novas aventuras. Mas Luke logo se mostrou prepotente demais.
—
E ainda assim vejo George e você com Luke.
—
Pra você ver como as coisas são.
—
Que fim deu esse Edil?
—
Foi fazer carreira solo. Deixou bem claro que um dia voltaria. “No dia que
vocês mais precisarem de mim!”.
—
Por que você foi sequestrado?
—
Luke jurava que jurava que eu estava com a Coroa de Rude. Isso, pode ficar
surpresa o quanto quiser! Esse é o nível do absurdo!
—
Acho que preciso ter uma conversinha com esse cara.
—
Faria um favor a todos nós. Quem sabe ele não se derrete e não toma juízo.
Mas
ela não ia agora. Ficou um pouco mais ali.
—
Você gosta de ler? — perguntou Rojão.
—
Adoro ler!
—
Então toma:
Entregou
a ela um livro pequeno de capa preta, aspecto surrado, isento de título e de
beleza. Ela examinou por todos os ângulos, abriu-o, folheou-o. Percebeu que
todo o livro era escrito à mão. A caligrafia não era nada didática, por assim
dizer. Talvez desse pra entender com certo esforço. Ficou mais tranquila quando
percebeu que da metade pro fim a caligrafia melhorava um tanto. Ainda assim não
pôde esconder o desencanto:
—
Eu tinha ficado tão animada por ganhar um livro...! Mas isso...?
—
Não reclame! Consegui por míseros cinco stêns em uma peregrinação com J.
Antônio, um amigo meu de literatura. Cavalo
dado não se olha os dentes, me utilizando da mania dele de soltar
expressões populares.
—
Mas podia ser algo mais bonitinho, não podia?
—
É um manuscrito! Vai saber o valor que isso pode ter. Talvez tenha sido uma
grande obra do passado esquecida pelo tempo. Quando formos novamente pra
Pousada, você pode perguntar a um dos grandes professores.
—
Espero irmos durante o dia. Aquele lugar é tenebroso demais à noite.
—
Como você é medrosa.
—
Ei! Você viu aquilo?
O
que se formava no céu era indescritível, mesmo que exatamente seja descrever o
que acontecerá aqui. Do horizonte sem se perceber, invadindo aquele céu outrora
azulíssimo sem imperfeições, surgia um imenso navio celeste composto unicamente
de nuvem. Passava pelo céu como figura tridimensional, uma visão não entendível
à lógica mas somente aos mais profundos sentimentos, porque não importava onde
se estivesse, a imagem era sempre vista nem de baixo e nem de lado.
Simplesmente ele vinha navegando pelo céu e assim se entendia. As velas eram
talvez a parte mais formosa, pois era através delas que forçosamente a luz
solar se intrometia, criando feixes de luz dourada naqueles retratos de
molduras igualmente douradas. Logo se percebia que acompanhando a embarcação
vinham outras menores, simplesmente surgindo. A sensação era de que trombetas
magníficas vibravam as cordas da alma. O prazer do existir, nem mesmo da vida
em si mas do simples existir, do existir em sua forma mais pura e primária, em
sua forma isenta dos pensamentos que adoecem o espírito; o prazer desse existir
em uníssono soava vibrando. E vibrava, vibrava de tal forma, cada menor
partícula do universo vibrava de tal modo que simplesmente vibrava. Vibrava em
tal intensidade.
As
imagens mais primitivas da criação surgiam desordenadas no íntimo de cada um
que contemplava o espetáculo divino. Surgiam no íntimo, não na mente, pois a
mente tornava-se secundária, inexistente; tudo se tornava alma, alma num
sentido tão puro quanto a pureza do mais puro existir. As imagens eram tão
sutis que impossível é a mim descrever aqui o que cada um sentiu. Sentiu, não
viu, pois ver é coisa da mente, a mente que mente sem mentir; sentir é coisa da
alma, alma que só sente, às vezes sentindo injustamente as mentiras da
mentirosa e inocente mente.
PEQUENO ENSAIO APOTEÓTICO
Partículas
laminadas envidraçadas espelhadas espalharam-se pelo infinito vácuo em que o
grande silêncio que restava reinava. Feixes de luz decidiram dançar em volta
das partículas, que mais pareciam cacos de vitrais é verdade, criando um
espetáculo luminoso indescritível que tenta se descrever. Era o ser, o próprio
espírito de alguém, que encontrava-se no centro de tudo, todas as coisas
orbitando a ele. Pois assim era, para ele, para o mais profundo de sua alma, a
ordem das coisas: tudo era, em sua natureza mais íntima, cacos de vidro com
ondas de luz colorida. As ondas tinham o papel de unir as coisas, ondas
caóticas é verdade, e essas coisas eram os cacos de vidro, cacos perdidos pela
escuridão. E essa escuridão era a vida. As ondas, a força que tudo une a que
chamam destino. Os cacos, nós. Nós, os seres perfeitos-mais-imperfeitos da
criação. E a criação, lá no início, era escuridão com ondas coloridas sem os
cacos.
Somos pedaços
irregulares de vidro fosco esperando por uma força exterior nos unir. Essa
espera é o que chamam de Esperança. As ondas são o combustível da existência.
Quando pensamos que
dois cacos foram unidos: ledo engano! O mesmo feixe luminoso que uniu veio e
separou. Para sempre. Mas as ranhuras que um caco fez no outro jamais poderão
ser apagadas.
E então sobra
acreditar que as ranhuras são o objetivo da existência. Ainda dizem que as
ranhuras são o que nos deixarão menos e menos foscos... ah, que fé esses meros
pedaços de vidro possuem!
Deus só quis
quebrar uma janela...
Essa
é a imagem preferida que tenho de alguém que se sentiu no êxtase citado antes
do Ensaio. Gostei tanto que treinei e treinei e treinei sua descrição... depois
de tanto treino só me sobrou o que acabei de escrever, mas mesmo assim estou
satisfeito. Esse prazer do mais puro existir pode ser sentido em qualquer
momento epifaníaco, mesmo que jamais ninguém tenha sentido uma epifania pura. A
verdade é que as pessoas estão sempre mudando, e a cada pequena mudança não
somos mais os mesmos. Só percebemos essa mudança, porém, depois de um grande
coletivo de mudanças...
Talvez
uma hora mais apropriada para falar do detentor da visão que tanto gostei ainda
vá chegar. Ele se foi há tanto tempo... cumpriu sua missão, você pode colocar
as coisas assim. É incrível como as pessoas (os cacos de vidro, imperfeitos e
foscos) são capazes de cumprir sua missão sem mesmo cumpri-la!
E
que voltemos logo aos nossos heróis.
A
visão foi mesmo coisa sem igual. Tanto utilizei de letras para falar sobre esse
sentimento que a narrativa material e terrena terá de ser um tanto sacrificada.
Resumamos que George, logo depois da completa fascinação, arrancou de seu
quarto um astrolábio muito bonito. Ele mostrou para toda a tripulação e logo
todos perceberam que ele era especial: se mexia como um relógio, e todos sabem
que astrolábios não são mecânicos como relógios! Era um astrolábio mágico,
assim como os mais belos lábios. E dourado também. Assim como os mais doces.
Então
George simplesmente sentenciou, para o término de um capítulo, logo depois que
a frota fantástica desapareceu no horizonte oposto àquele do qual ela surgira:
—
A oeste!